segunda-feira, 16 de julho de 2012

Pós-graduação - a esquizofrenia do governo federal

Como a maioria dos professores que entraram em concursos nas Universidade Federais nos últimos anos, eu tive uma formação de 10 anos, que incluiu graduação, mestrado e doutorado. Como a grande maioria também, para o mestrado e doutorado eu recebi uma ajuda do governo (as conhecidas bolsas), de tal modo que pude completar minha formação sem a necessidade de trabalhar durante este período. Em termos práticos, quanto o governo federal gasta com um professor que tenha tido uma trajetória acadêmica parecida com a minha?

Para simplificar os cálculos, vou pegar valores apenas da Capes (no meu caso, eu fui financiada também pela Fapesp, cujos valores das bolsas são maiores), pois para o objetivo do post acredito ser suficiente calcular pelo mínimo. Vou fazer dois tipos de simulação: formação no Brasil e formação no exterior.

Formação no Brasil

O acadêmico que tenha optado por fazer toda a formação no Brasil teria recebido da Capes a quantia de R$115.200,00 nos valores de bolsa atuais (24x R$1200,00 (mestrado) + 48x R$1800,00 (doutorado)), sem falar na taxa de bancada que é um valor que cada pós graduação recebe em função do número de bolsas.

Formação no exterior

Já o acadêmico que optou por fazer o doutorado no exterior (e vamos pegar, para simplificar, os Estados Unidos, que deve ser o destino mais procurado) teria recebido a quantia de R$166.908,00 (24x R$1200,00 (mestrado) + 48x R$2652,00 (doutorado) + R$2652,00 (auxílio instalação) + 4x R$2040,00 (seguro saúde)). 

Número total de bolsas concedidas anualmente pela Capes

Procurei por este dado no site da Capes e não consegui encontrar, mas neste link consegui um gráfico que pode servir para a estimativa que estou fazendo (o gráfico tem valores até 2010):

Mestrado - 25.000 bolsas
Doutorado - 15.000 bolsas

Total investido pela Capes anualmente em formação de acadêmicos no Brasil: R$360 milhões (12 meses de mestrado x 25.000) + R$324 milhões (12 meses de doutorado x 15.000) = R$684 milhões

Preciso frisar que a quantia acima é só o que a Capes investe por ano com bolsas, sem contar diversos outros gastos e outros programas de pós-graduação; ainda simplifiquei colocando todas as 15 mil bolsas como bolsas no Brasil. Ainda temos o CNPq, que deve investir um número até maior que esse em bolsas, sem mencionar os editais de projetos e as outras modalidades de bolsa.

OK, mas o que estes números nos dizem? Bom, em primeiro lugar, que o Brasil tem investido na formação de profissionais com pós-graduação, e não são poucos profissionais: são 25.000 possíveis mestres e 15.000 possíveis doutores. Os valores das bolsas não são, em hipótese alguma, abusivos - pelo contrário, são uma vergonha, pois em muitos casos não permitem ao pós-graduando um mínimo de subsistência. Mas enfim, esta é uma discussão para outro post.

Segundo lugar, que o Brasil acha importante investir na formação de profissionais a nível de pós-graduação - a cada dois anos são colocados no mercado, no mínimo, 25.000 mestres e a cada quatro anos, 15.000 doutores. E tomando por base o número de concursos que aparecem a cada dois, três anos, estes profissionais NÃO ESTÃO SOMENTE na vida acadêmica (os últimos grandes concursos ofereceram num ano 1000 vagas de professor federal, e certamente menos que isso de professores de ensino superior estaduais). Ou seja, o governo federal não está investindo em pós-graduação apenas para alimentar a academia; está investindo para o mercado de trabalho em geral, seja ele qual for.

Neste link aqui, é possível baixar um estudo intitulado "Doutores 2010 - Estudos da Demografia da Base Técnico-Científica Brasileira", com uma série de gráficos interessantes. Vou falar de alguns em específico, para fomentar a discussão.

O primeiro gráfico que aparece (na página 20) é o número de doutores por mil habitantes na faixa etária de 25 a 64 anos de idade. O primeiro país que aparece é a Suíça, com 23 em mil habitantes, depois vem Alemanha (15,4 por mil habitantes), depois EUA (8,4/mil habitantes) e assim por diante. O Brasil aparece na penúltima posição deste gráfico (não estão todos os países do mundo, mas apenas alguns), com 1,4 doutores por mil habitantes - o que significa 252.000 doutores.

Mais abaixo, lá pela página 40, há um gráfico com a distribuição de doutores por área de atuação. Vemos no gráfico que a maioria está voltada para o setor de educação (76,77%), ao menos como atividade com maior remuneração. No entanto, logo abaixo do texto, os autores do estudo apontam que outros setores da sociedade estão absorvendo doutores numa velocidade muito maior que a educação - uma clara indicação de que este tipo de profissional está sendo requisitado por outros setores que não são a academia.

Esta questão de outros setores estarem requisitando profissionais com títulos de mestre e doutor é algo que podemos ver nos anúncios de emprego (veja neste link como exemplo, e neste aqui também). No setor de educação, é algo que nos acostumamos a ver nos últimos 20, 30 anos: muitos concursos só podem ser feitos por candidatos com, no mínimo, título de doutor. Esse requisito da academia tem uma razão de ser: na academia, o profissional não é apenas um reprodutor do conhecimento, como uma gravação datada; ele é produtor de conhecimento, educador (e para ser educador, não basta apenas parar no tempo no conhecimento, é necessário se atualizar), formador de recursos humanos e outros acadêmicos. Sem o professor, nenhuma carreira existiria. E quanto menor a faixa etária do público-alvo, mais importante é o trabalho deste profissional, como bem sabem os finlandeses e outros países ditos de primeiro mundo.

Bom, colocado meu ponto de vista - de que título não serve apenas para a academia, mas para outros setores econômicos - a pergunta que devemos fazer é: por que a "iniciativa privada" valoriza mais, em termos financeiros, estes profissionais titulados em comparação com o governo federal? Para entender o que quero dizer, vamos olhar a tabela abaixo:
Esta tabela coloca em evidência como o governo valoriza o investimento que ele próprio faz em pós-graduação neste país: os cargos que melhor pagam não precisam mais do que graduação. E mais: os cargos que, a princípio, são os responsáveis pela formação de todos os outros (professores), estão na rabeira da tabela. Enquanto países como Finlândia, com os melhores índices educacionais do mundo, investem e, mais importante, valorizam a formação continuada dos seus professores, o Brasil prefere investir na formação destes profissionais e depois deixá-los com o dilema "ganhar mais e jogar no lixo a formação ou ganhar menos para não desperdiçá-la?".

Há, ainda, a opção que alguns dos nossos cientistas fizeram, duramente criticada pelos órgãos de fomento do governo: ir fazer doutorado no exterior e, diante de uma proposta de trabalho que esses profissionais NUNCA TERIAM no Brasil, estabelecer-se por lá, o que significa que o Brasil investiu na formação de um profissional que atuará para o crescimento de outro país. Reprovável esta atitude? Não sei, visto que o nosso governo parece não oferecer condições para que o cientista recuse uma oferta de emprego que paga bem, numa universidade com estrutura de pesquisa de primeiro mundo, com acesso a equipamento, material de consumo e financiamento de forma descomplicada, tendo status reconhecido pela sociedade. É como se, ao optar pelo Brasil, este cidadão estivesse naquela brincadeira do programa do SBT da década de 1980, "Domingo no Parque":

- Você quer trocar sua bicicleta por uma caixa de fósforos?

- Sim!

Ou seja, surdo e cego.

Para finalizar, a pergunta que não quer calar: todo mundo sabe que a moeda mais forte atualmente é o conhecimento. Acredito que seja por este motivo que o Brasil tem investido de forma crescente, desde a década de 1980, em formação em nível de pós-graduação e pesquisa. Mas por que então, após dar toda esta formação, o profissional não é valorizado pelo próprio governo? Ou melhor, para que gastar 10 anos de sua vida para ganhar BEM MENOS que alguém que investiu 4 anos? A questão não é, em absoluto, desvalorizar o profissional que ganha mais só com graduação; é valorizar aquele com formação maior, pagando um salário DECENTE E COMPATÍVEL.

Num país em que analfabetos funcionais fazem parte do Congresso Nacional, escândalos de corrupção não chocam mais e a sociedade acha que seus professores ganham é muito, difícil ver outro destino a não ser a eterna submissão ao primeiro mundo, sem nunca ter a oportunidade de SER o primeiro mundo. Que possamos explicar isso aos nossos filhos no futuro.