quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Saúde mental

2020 não foi um soco no estômago, foi uma ruptura de baço. Não bastava a pandemia e todas as consequências catastróficas vindas com ela, estamos na incerteza de termos vacina para o ano que vem, a Amazônia vem sendo destruída a galope e o governo não nos dá a mínima segurança em qualquer sentido. De tudo de muito ruim que está acontecendo, eu quero pegar um assunto em particular: saúde mental.

A pandemia nos isolou, nos tirou a vida normal ao qual estávamos acostumados e nos impôs uma nova “normalidade” que nos desconcerta. Não raro escuto diversos relatos de depressão, ansiedade, pânico. Eu mesma reparei a minha ansiedade em falar com as pessoas no mundo real, sobre qualquer assunto, e como me fazia bem quando isso acontecia (podia ser só uma conversa sobre o tempo, por exemplo). Ainda que eu seja meio bicho do mato, reservada, percebi essa ânsia pelo contato humano ao vivo, e imagino que as pessoas mais extrovertidas tenham sentido muito mais que eu. Não bastava chamada em vídeo, era necessário saber que não estamos sozinhos, que há outros seres humanos de carne e osso por aí, e que todos estamos sofrendo.

Outro dia assisti uma live da FTD Editora em que se debatia “a transformação da comunidade escolar”. Dentre os participantes, dois psiquiatras, um psicopedagogo, um casal de empresários do setor de educação e um consultor para digitalização no ambiente escolar. As falas dos psiquiatras e do psicopedagogo iam no sentido das angústias e mazelas de pais, professores e alunos em relação ao ensino remoto e a falta de contato humano. Devo dizer que escutei muitos relatos preocupantes durante a pandemia, desde crianças em depressão e com ideações suicidas, até professores exaustos, insatisfeitos e angustiados com a preparação e realização das aulas remotas (câmeras desligadas, falta de feedback, dificuldade na elaboração das aulas, etc.). E claro, relatos de mães, na sua maioria, que, em conflito para acomodar as atividades de casa, de emprego e dos filhos em aula, se sentiam falhas e deprimidas. Ou seja, aquelas falas contemplavam exatamente a realidade que presenciei.

Mas então vieram as falas dos empresários e do consultor, com alto teor mercadológico, pintando um mundo maravilhoso e colorido do ensino remoto. Ouvi com exasperação e profunda angústia relatos deste mundo que desconheço – talvez fosse em Marte, ou em Plutão, vai saber. Segundo os interlocutores, os alunos estão ávidos a digitalizar a escola analógica, pois o mundo já é assim e só a escola é que ficou pra trás na mudança. Que era possível usar a criatividade pra fazer uma aula muito mais interessante e completa, em que o professor não era o detentor do conhecimento, mas um gerente e coordenador num sistema “self-service” de conhecimento. Tudo para eles tinha um lado extremamente positivo e apontava a necessidade urgente de virarmos digitais. “E os contras deste tipo de ensino?” Pergunta que não foi sequer levada em conta no mundo maravilhoso do ensino remoto.

Assisti aquilo com muita, mas muita ansiedade e angústia. Fiquei chocada com a falta de noção e consideração com professores e alunos, especialmente aqueles que não tem acesso à tecnologia, internet rápida e ambiente de trabalho salutar. Na Unila tivemos a opção de oferecer ou não disciplinas nesta modalidade remota, mas sei que não foi o que aconteceu com os professores de instituições privadas, como é o caso dos professores da minha filha. Na obrigação de ter o que comer e sustentar minimamente a família, não tiveram e não terão escolha, mesmo que não saibam como dar uma aula neste ambiente, ou não acreditem neste tipo de ensino. Me dói pensar nesses professores, verdadeiros heróis que, junto com os profissionais da saúde, vivenciaram situações para as quais tiveram que abrir mão do seu bem estar para ajudar os alunos.

Aquelas falas causaram uma revolta no psicopedagogo, pelo que pude sentir em suas considerações finais. Ele apontou a idolatria da tecnologia, a necessidade humana do contato “olho-no-olho” e estudos que indicam que o processo de ensino-aprendizagem através de livros físicos ainda é o mais eficiente. E, o que deveria ser mais que óbvio para qualquer educador: crianças e adolescentes não sabem o que é melhor para eles em termos de educação, e não cabe a eles decidir. Esta fala me contemplou, mas ainda assim terminei a live com um incômodo enorme causado pela atitude mercadológica de vender um produto que, não, não substitui o ensino presencial, os professores e os alunos. Não somos números e nem gestores; somos seres humanos gregários que aprendemos e trocamos experiência com outro ser humano, e que o contato via computador não satisfaz essa necessidade.

Os psiquiatras da live também comentaram que os efeitos que tudo isso pode causar nas crianças já se mostram perturbadores, como o aparecimento de ansiedade e depressão em crianças tão novas. Já ouvi mães preocupadas com a incapacidade das crianças de socializar; eu mesma estava muito preocupada com a Yasmim, e nos esforçamos (eu e Dani) para proporcionar encontros seguros e chamadas pelo celular com outras crianças. No final de novembro a escola dela abriu para aulas presenciais, com todo o cuidado possível. Nós, temerosos com a pandemia, não mandaríamos, mas foi um pedido dela muito insistente que nos convenceu que seria importante ela ir, conviver com as professoras e os amiguinhos. E estávamos certos: colocados na balança o risco e a saúde mental dela, optamos pela segunda, após muita reflexão. Reflexões como essa nós fizemos para o final do ano, por exemplo, e acabamos decidindo que não vamos viajar e ver os parentes, pois nesse caso o risco parecia mais importante.

Com isso quero dizer que, se há algo que precisamos nos atentar, é com a saúde mental de nossas crianças e com a nossa, claro. Há que se pesar riscos e benefícios, e optando por riscos, fazer com responsabilidade, estudar o problema e conhecer suas limitações psicológicas. É triste ver o desmonte do sistema de saúde mental do SUS neste momento porque acredito que todos sairemos com sequelas psicológicas (alguns mais, outros menos) e muitos precisarão de ajuda profissional. Mas quem terá a ajuda é quem pode pagar, e mais uma vez, a desigualdade social se aprofunda. Mais uma vez esse governo, que claramente é fixado na morte e na destruição, age de forma criminosa, leviana e irresponsável, dilapidando um trabalho de anos dos servidores do SUS. Talvez muitos não julguem importante ter sistema de saúde mental no SUS, mas para quem precisa e faz uso é fundamental para se manter vivo e funcional, e acredito que todos nós sabemos, por conta da pandemia, o quanto estar bem psicologicamente é importante pra vida.

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Ser professor

 

Não me formei para ser professora, tanto que na época da graduação eu poderia fazer bacharelado e licenciatura juntos, e escolhi apenas bacharelado. No entanto, sabia que, para fazer aquilo que eu queria, que é pesquisa, precisava estar em uma universidade pública e, portanto, deveria ser professora também.


Foi em 2006, na Unipampa, que comecei a minha carreira docente. Na época, eu peguei uma disciplina de Cálculo 1 para o curso de Engenharia de Alimentos, pois meu concurso tinha sido na Matemática. Na primeira aula eu estava uma pilha de nervos, e deve ter sido a pior aula que já dei (rs). Mas quem me conhece sabe que não consigo fazer nada meia-boca (não estou me vangloriando, até porque o preço de ser assim é muito alto), e com o tempo fui aprimorando minha “didática” e gostando de ensinar. Li Paulo Freire e Rubem Alves, tentei abordagens diferentes; aprendi que ensinando eu me aprofundava cada vez mais nos temas das disciplinas, pois é quando a gente tem que explicar é que usamos tudo o que sabemos para se fazer entender. Também tive que me deparar com as minhas falhas e limitações pois, não importa o quão boa seja a nossa aula, a aprendizagem não depende apenas de nós.


Tive poucos feedbacks, mas os que recebi me emocionaram muito mais que qualquer artigo que eu tenha publicado. Teve um que lembro com muito, muito carinho: uma estudante jamaicana que me procurou para pedir ajuda extraclasse, pois ela tinha muita dificuldade. Combinamos vários horários de atendimento, e no fim ela passou sem exame. Dias depois do fim da disciplina, ela me manda um e-mail dizendo que tentou me encontrar pessoalmente, mas não conseguiu: ela queria me agradecer muito, porque sem mim ela não teria conseguido. Toda vez que penso nisso lágrimas aparecem nos meus olhos, porque a verdade é que eu não vou ser nenhuma Marie Curie ou Emily Noether na pesquisa, então o meu legado mais importante é ajudar os estudantes a entender física, e quem sabe eles e elas contribuirão mais do que eu para a ciência.


Hoje em dia é na sala de aula que me realizo, pois ensinar não é uma via de mão única: ao ensinar, eu aprendo, penso e crio. Uma aula, para mim, é quase como um ritual: me visto para me sentir bem, e me preparo para a melhor aula que eu possa dar. Às vezes dá certo, e às vezes não dá, afinal sou humana. E estou morrendo de saudades desse contato com os estudantes.


Na pandemia, tive a oportunidade de ver professores do ensino básico ensinar através do ensino remoto da Yasmim, e digo: é outro nível. Eu realmente acho que esses(as) professores(as) têm um dom fantástico, de fazer a criançada entender coisas e ao mesmo tempo manter a disciplina necessária para a aula. Eu os(as) admiro muito mais agora, e entendo completamente o lugar de destaque que possuem nos países nórdicos. São eles e elas que colocam os primeiros pilares de conhecimento na cabecinha dos futuros adultos. É um trabalho de muita importância para formar cidadãos e seres humanos éticos e responsáveis.


Um parabéns a todos os meus colegas, conhecidos e amigos professores. Que possamos manter a chama da empolgação e da dedicação no nosso fazer e ser.

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Dias de marmota

 Acordei de um sonho de vida normal. Como no filme Amnésia, olho ao redor e lembro: pandemia, quarentena, aff... Levanto, faço meu café, como alguma coisa. Vou ao banheiro, coloco a lente, passo filtro solar. Dou uma geral na cozinha. Yasmim acorda, tem aula de xadrez logo. Coloco roupa para lavar. Coloco o Skype para Yas ter sua aula. Jogo um pouco no celular; logo o almoço estará pronto. Almoço pronto, sentamos à mesa. Terminamos, começo o processo de recolher tudo, colocar em potinhos, colocar louça na máquina, fazer café e esperar o link da aula online da Yas. Preparo o uniforme, a escova de dentes dela, o aparelho, arrumo a mesa pra aula. Sento um pouco, aguardando o link, e jogo no celular. Chamo Yasmim pra escovar os dentes e ficar pronta pra aula. O link chega. Vamos à sala, ligo o computador, digito o código do Google Meet; ela senta pra aula. Vou pro meu outro computador, começo a fazer pesquisa ("pra quê????"). "Malditas funções de Bessel..." Chega a hora do lanche da Yasmim: pão na chapa com Nutella. Volto pra pesquisa. "Qual relação de correlação eu tenho que usar Dani?" "Vê lá no site que te passei." "OK". Acaba a aula da Yasmim. "Posso jogar no celular?" "Pode." Encerro as contas, vou assistir um dos meus programas favoritos: "Vivendo com o Inimigo". "Como as pessoas podem se tornar tão más? Ah, sei, culpa dos pais... (rs)" Hora do jantar da Yasmim: esquentar o que sobrou do almoço. Mais um pouco de TV e crochê. "Queria fazer tudo... como se tenho duas mãos?" "Mãe, comi tudo... posso comer açaí?" "Pode." Açaí pra Yasmim. Conversamos, Dani e eu, brevemente, em como o Brasil está uma m*rda. Mais TV, agora "Law and Order: SVU". Hora de colocar Yasmim na cama. Banho, trazer o pijama, arrumar escova e aparelho... "Mãe, lanchinho da noite!" "Pede pro seu pai". Dani dá o lanchinho da noite: frutas. "Yasmim, já acabou?" "Não ainda..." "Pára de enrolar, vem escovar os dentes pra dormir!" "Mãe, tô com dor de barriga..." "Já passa... são gases..." "Mãe, e se tiver uma aranha no meu quarto?" "Não vai ter, vai dormir no seu quarto! Boa noite Yas!" "Boa noite mãe!" Vou pro quarto, continuo um dos trocentos projetos de crochê. "Posso ver Fringe aqui Daf?" "Sim..." Yasmim volta: "mãe, não consigo dormir..." "Vai lá pra sua cama, fica pensando em coisas boas e logo vc dorme..." "Não consigo mãe..." "Vai dormir Yas!" Passa um tempo. "Não consigo dormir..." "Então começa dormindo aqui e depois papai te leva pra sua cama..." Escovo os dentes. Tiro a lente de contato. Pego meu livro atual: BTK. Tô espremida no canto da cama. Leio um pouco, fico com sono... Dani leva Yas pra cama. Bate a fome, como mais do que deveria, sinto sono e vou escovar os dentes (de novo). Durmo quase que imediatamente. De madrugada, Ronro pede comida. Acordo sonâmbula, coloco comida pra ela. Durmo de novo. Ela resolve ficar em cima de mim. "Preciso me mexer..." Me mexo, Ronro sai. Volta de novo. Sonho com um mundo normal, onde temos contato afetivo com as pessoas, abraçamos, beijamos, discutimos, conversamos, saímos... Acordo. "Mais um dia da marmota... até quando?"

sábado, 8 de agosto de 2020

A mercantilização dos afetos

Eu consumo porcaria televisiva constantemente porque me faz esquecer um pouco a dura realidade. Em especial reality shows, apesar de que Big Brother Brasil já seja demais pra mim (tenho meus limites – rs). Dois dos reality shows que tenho visto atualmente são 90 dias para casar (o normal e o felizes para sempre?) e Amor fora das grades. Não vou dizer se são bons ou não (é entretenimento de gosto duvidoso com certeza (rs)), mas vou aqui deixar minhas reflexões sobre os programas no que concerne ao tipo de relacionamento que se estabelece entre a maioria dos casais.

No 90 dias para casar duplas formadas por um americano(a) + um estrangeiro(a) decidem se casar após um relacionamento virtual de algum tempo, e então eles solicitam um visto K1 americano para que o estrangeiro(a) vá para os EUA; eles então têm 90 dias para oficializar a união. Já o subproduto 90 dias para casar: felizes para sempre? é o acompanhamento das vidas de alguns dos casais após o casamento, e a adaptação a famílias, convívio, empregos, etc. Depois de assistir várias vezes alguns episódios (porque o TLC repete demais... ), eu fiquei impressionada como a relação dos casais se estabelece através de uma cobrança por parte dos americanos(as) dos benefícios que, a princípio, eles(as) proporcionaram a seu parceiro(a) estrangeiro(a) por trazerem os(as) mesmos(as) para os EUA: green card e o sonho americano. Fiquei chocada como os(as) estrangeiros(as) são tratados como posse do(a) americano(a), mesmo que haja de fato uma suspeita de que o(a) estrangeiro(a) tenha casado só pelo green card. O(a) estrangeiro(a) é propriedade e deve se comportar como tal até que consiga sua “liberdade” ao conseguir o famigerado green card. Mesmo nos casos em que eles(as) consigam, ainda assim, paira a ameaça de que o(a) americano(a) possa denuncia-lo(a) à imigração por fraude no casamento.

Uma das histórias que fiquei muito chateada é a de Pedro e Chantel. Pedro é da República Dominicana, e Chantel americana de classe média. Conheceram-se na República Dominicana, apaixonaram-se e resolveram se casar, com Pedro pedindo o visto K1 e indo para os EUA. Mas Chantel não contou aos pais classe média que Pedro estava nos EUA para casar com ela, e os pais começaram a achar que a filha estava caindo num golpe, e desde então qualquer atitude de Pedro e da família dele eram provas para eles desse fato. Eles se casaram mediante um acordo pré-nupcial que Pedro foi obrigado a assinar, e que causou chateação ao Pedro e à família dele (composta pela mãe e sua irmã). Após o casamento nos EUA e do green card, Pedro mandava quantias de dinheiro e presentes para a família dele, o que deixava Chantel incomodada. Mandar dinheiro para a família é algo muito comum para estrangeiros que moram nos EUA e sejam de países pobres – inclusive brasileiros – além do fato de que, nas sociedades latinas, o homem continua a ter a responsabilidade por sua família. Mas Chantel nunca entendeu isso e nem sua família, porque ela tinha que ter um padrão de vida melhor - afinal de contas, ela era a esposa. Quando decidiram fazer um segundo casamento na República Dominicana para que as famílias se conhecessem, Chantel e a família ficaram chocados com duas coisas: o apartamento que a mãe e irmã de Pedro moravam, e a quantidade de presentes que ele levou pra elas. O apartamento delas é um apartamento de três quartos mas que, pelas imagens, dava para ver ser bastante humilde. No entanto, para os americanos, o fato de ter 3 quartos era um luxo, principalmente porque Pedro e Chantel viviam num apartamento bem menor. Num outro momento, a família de Chantel foi conhecer a avó do Pedro, que morava longe e numa região bem empobrecida. Ao chegar ao lugar, os americanos se recusaram a sair do carro, com medo por suas vidas (“a milícia deve viver aqui”) e “revolta” por achar que a mãe e irmã do Pedro estavam muito melhores que o resto da família e isso era prova do plano malévolo de enriquecer às custas do casamento de Pedro. Além de irem embora sem conhecer a avó de Pedro (que havia preparado um jantar para eles), a família falou a Chantel que era óbvio como Pedro estava sendo manipulado pela mãe e irmã para se darem bem. É repugnante a ideia que os americanos têm dos estrangeiros, e a forma de impor sua vontade e suas opiniões pela fragilidade deles.

O segundo programa – Amor fora das grades – mostra algo parecido. É a história de relacionamentos que se formaram entre um presidiário(a) e alguém que está fora da cadeia. No caso, o presidiário(a) está prestes a sair em liberdade e a iniciar a convivência com seu parceiro(a). Mas quando o presidiário(a) sai, vem a cobrança para se comportar como exclusivo de seu parceiro(a), sem poder “curtir a vida” ou agir como alguém “normal”, com vontades e desejos. Ali a moeda de troca é o amor incondicional do parceiro(a) durante o tempo de reclusão. Então, por esse motivo, acham que têm o direito de cobrar esse amor e a sua submissão como “pagamento”.

Não vejo empatia, amor, vontade de construir uma vida com respeito – só vejo posse e dominação. E isso tem a ver com estabelecer uma relação de mercantilização com o(a) parceiro(a) mais fragilizado(a), algo como patrão-empregado. É quase um contrato de escravidão, em que o estrangeiro ou o presidiário tem que “andar na linha” para não perder as oportunidades que lhe foram dadas. Na maior parte das relações, o(a) parceiro(a) dominante escolheu procurar alguém nessa situação justamente por não conseguir estabelecer um relacionamento fora desses moldes – como se eles fossem pessoas rejeitadas pela sociedade, “losers”, e sua oportunidade de ter alguém para construir a vida seja apenas através do aprisionamento e posse.

Não é de agora que isso acontece, e por muito tempo mulheres estão à mercê deste tipo de relacionamento. Mas agora temos também as mulheres na posição de poder e, infelizmente, não se comportam de forma diferente dos homens. Enfim, me causa estranheza que relações amorosas se configurem através dessa mercantilização do afeto - um sinal de que o capitalismo está cada vez mais entranhado na nossa vida, permeando inclusive situações onde não se encaixaria. Triste conclusão.

terça-feira, 2 de junho de 2020

Nazi-fascismo e o governo Bolsonaro

O nazi-fascismo está mais presente do que nunca. Não foi suficiente apresentar ao mundo os campos de concentração e um mundo dizimado pela Segunda Guerra: suas sementes teimam em brotar mesmo um século depois. É preciso entender que o nazi-fascismo tem uma receita, uma estética e uma organização muito bem definidas, estas seguidas a risca pelos movimentos de ultra direita. Vou falar aqui um pouco desta receita e de como o governo Bolsonaro e seu séquito de fanáticos se apropriam e reproduzem este movimento.

Após sua prisão em 1924, Hitler escreve Mein Kampf, o livro que expõe sua visão de mundo. Esta visão de mundo engloba poucos conceitos e de forma vaga. Para Hitler, a Alemanha foi destruída pelos "traidores de Novembro", que aceitaram a derrota da Alemanha na Primeira Guerra e era representada pela República de Weimar, de orientação política social democrata. No entanto, Hitler culpa os comunistas, dizendo que o marxismo era uma invenção dos judeus, a grande escória que subjugava o povo alemão. Era necessário resgatar os valores alemães: a sua cultura e tradição (folk), a família e a pureza da raça ariana. Os degenerados e fracos (judeus, ciganos, comunistas, pessoas que necessitam de cuidados especiais) deviam ser banidos e destruídos, e os verdadeiros alemães (raça ariana) deviam reconstruir a Alemanha através do Terceiro Reich. Os territórios perdidos na Primeira Guerra deviam ser recuperados, e outros deviam ser conquistados para o que ele chamava de "espaço vital", necessário para reconstruir a Alemanha e elevá-la acima dos outros povos como grande potência militar.

Para isso, Hitler sabia que era necessário ter um exército próprio de milicianos (as SA e as SS), o qual ele teria total controle e que estariam a postos para o que fosse necessário fazer. Após o golpe frustrado no começo da década de 1920, ele entendeu que esta não era uma via possível para a chegada ao poder, e por isso concentrou esforços em chegar ao posto mais alto de comando da Alemanha pela via democrática. As tropas de assalto (SA) intimidavam os oponentes, em especial os comunistas, mas não seriam usadas para a chegada ao poder: elas simplesmente simbolizavam o poder militar que Hitler poderia reunir, como uma ameaça velada.

Hitler construi uma estética para o Terceiro Reich. Sua visão arquitetônica era calcada na era clássica, fazendo um apelo claro para o retorno aos valores tradicionais. A arte moderna, em especial a produzida por judeus, foi execrada: algumas destruídas quando ele chegou ao poder, outras expostas num museu para exemplificar "a arte degenerada que deveria ser banida". As fotos dos grandes comícios nazistas (que ocorriam em Nuremberg) mostram uma ordenação que lembra a Roma antiga, com suas tropas perfiladas de forma milimétrica, as bandeiras nazistas e os uniformes militares. E claro, não podia faltar a saudação "Heil Hitler" com o braço estendido, gesto de profunda submissão de seu séquito ao grande Fuhrer.

Goebbels, por sua vez, foi o grande idealizador da propaganda nazista. A propaganda nazista era necessária para manter o controle das massas, para a grande lavagem cerebral que martelava que era necessário se proteger do avanço comunista e reconstruir a Alemanha para os verdadeiros alemães. A visão do Fuhrer era repetidamente propagada, com discursos eloquentes e de slogans simples, que iam de encontro aos corações e estômagos alemães.

Com esses três grandes pilares (milícia organizada, estética e propaganda), o partido nazista cresceu muito no final da década de 1920 e começo de 1930, levando Hitler a ser convidado pelo presidente Hindenburg para ser chanceler da Alemanha em 1933. Com a morte de Hindenburg e a dissolução do Reichstag, ele virou o ditador da Alemanha e conduziu o mundo para a Segunda Guerra Mundial e o holocausto.

A receita do nazi-fascismo é seguida com exatidão por Bolsonaro e a ultra direita. Não são à toa as milícias armadas e a campanha para que todo cidadão tenha uma arma para poder se defender, as camisas verde-amarelas, os slogans como "Brasil acima de tudo, Deus acima de todos", o temor do avanço comunista ("Brasil não vai virar uma Venezuela"), e a retomada dos valores tradicionais de tradição, família e propriedade. Bolsonaro prega um nacionalismo para poucos - apenas para os cidadãos de bem, os não degenerados. Assim como Hitler, chega ao poder com o apoio da burguesia, que vê a possibilidade de retomar seus lucros exorbitantes via exploração da força de trabalho e retirada de direitos trabalhistas. Mas, para nossa sorte, Bolsonaro não conseguiu retomar a economia e a reconstrução do país, algo que Hitler teve grande êxito.

No entanto, não nos deixemos enganar com suas dificuldades técnicas em recuperar o país e conter a pandemia da COVID-19. As manifestações em frente ao Palácio do Planalto todos os domingos pedindo o fechamento do congresso e do STF, as ameaças de seus filhos e ministros à democracia e as manifestações que usam a estética da supremacia branca devem nos arrepiar e nos colocar em sinal de alerta máximo. Não são demonstrações de loucos que não sabem o que fazem, ao contrário: elas explicitam ainda mais a visão de mundo de Bolsonaro e de seus seguidores. Uma visão de mundo que combina nacionalismo, fascismo, ditadura e extermínio/subjugação de quem se coloca em oposição ao seu projeto de poder, apoiada por milícias armadas prontas a agirem. Nestes 30 anos desde a derrubada da ditadura militar, nunca estivemos tão próximos de retornar a 1964. E assim como em 1964, estamos perplexos e paralisados.

É hora de acordarmos, de nos posicionarmos. A história da Alemanha nazista precisa ser o alerta para o que estamos vivenciando. Não adianta somente gritarmos nas redes sociais que somos antifascistas; é preciso sermos de fato. 

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Pós-graduação - a esquizofrenia do governo federal

Como a maioria dos professores que entraram em concursos nas Universidade Federais nos últimos anos, eu tive uma formação de 10 anos, que incluiu graduação, mestrado e doutorado. Como a grande maioria também, para o mestrado e doutorado eu recebi uma ajuda do governo (as conhecidas bolsas), de tal modo que pude completar minha formação sem a necessidade de trabalhar durante este período. Em termos práticos, quanto o governo federal gasta com um professor que tenha tido uma trajetória acadêmica parecida com a minha?

Para simplificar os cálculos, vou pegar valores apenas da Capes (no meu caso, eu fui financiada também pela Fapesp, cujos valores das bolsas são maiores), pois para o objetivo do post acredito ser suficiente calcular pelo mínimo. Vou fazer dois tipos de simulação: formação no Brasil e formação no exterior.

Formação no Brasil

O acadêmico que tenha optado por fazer toda a formação no Brasil teria recebido da Capes a quantia de R$115.200,00 nos valores de bolsa atuais (24x R$1200,00 (mestrado) + 48x R$1800,00 (doutorado)), sem falar na taxa de bancada que é um valor que cada pós graduação recebe em função do número de bolsas.

Formação no exterior

Já o acadêmico que optou por fazer o doutorado no exterior (e vamos pegar, para simplificar, os Estados Unidos, que deve ser o destino mais procurado) teria recebido a quantia de R$166.908,00 (24x R$1200,00 (mestrado) + 48x R$2652,00 (doutorado) + R$2652,00 (auxílio instalação) + 4x R$2040,00 (seguro saúde)). 

Número total de bolsas concedidas anualmente pela Capes

Procurei por este dado no site da Capes e não consegui encontrar, mas neste link consegui um gráfico que pode servir para a estimativa que estou fazendo (o gráfico tem valores até 2010):

Mestrado - 25.000 bolsas
Doutorado - 15.000 bolsas

Total investido pela Capes anualmente em formação de acadêmicos no Brasil: R$360 milhões (12 meses de mestrado x 25.000) + R$324 milhões (12 meses de doutorado x 15.000) = R$684 milhões

Preciso frisar que a quantia acima é só o que a Capes investe por ano com bolsas, sem contar diversos outros gastos e outros programas de pós-graduação; ainda simplifiquei colocando todas as 15 mil bolsas como bolsas no Brasil. Ainda temos o CNPq, que deve investir um número até maior que esse em bolsas, sem mencionar os editais de projetos e as outras modalidades de bolsa.

OK, mas o que estes números nos dizem? Bom, em primeiro lugar, que o Brasil tem investido na formação de profissionais com pós-graduação, e não são poucos profissionais: são 25.000 possíveis mestres e 15.000 possíveis doutores. Os valores das bolsas não são, em hipótese alguma, abusivos - pelo contrário, são uma vergonha, pois em muitos casos não permitem ao pós-graduando um mínimo de subsistência. Mas enfim, esta é uma discussão para outro post.

Segundo lugar, que o Brasil acha importante investir na formação de profissionais a nível de pós-graduação - a cada dois anos são colocados no mercado, no mínimo, 25.000 mestres e a cada quatro anos, 15.000 doutores. E tomando por base o número de concursos que aparecem a cada dois, três anos, estes profissionais NÃO ESTÃO SOMENTE na vida acadêmica (os últimos grandes concursos ofereceram num ano 1000 vagas de professor federal, e certamente menos que isso de professores de ensino superior estaduais). Ou seja, o governo federal não está investindo em pós-graduação apenas para alimentar a academia; está investindo para o mercado de trabalho em geral, seja ele qual for.

Neste link aqui, é possível baixar um estudo intitulado "Doutores 2010 - Estudos da Demografia da Base Técnico-Científica Brasileira", com uma série de gráficos interessantes. Vou falar de alguns em específico, para fomentar a discussão.

O primeiro gráfico que aparece (na página 20) é o número de doutores por mil habitantes na faixa etária de 25 a 64 anos de idade. O primeiro país que aparece é a Suíça, com 23 em mil habitantes, depois vem Alemanha (15,4 por mil habitantes), depois EUA (8,4/mil habitantes) e assim por diante. O Brasil aparece na penúltima posição deste gráfico (não estão todos os países do mundo, mas apenas alguns), com 1,4 doutores por mil habitantes - o que significa 252.000 doutores.

Mais abaixo, lá pela página 40, há um gráfico com a distribuição de doutores por área de atuação. Vemos no gráfico que a maioria está voltada para o setor de educação (76,77%), ao menos como atividade com maior remuneração. No entanto, logo abaixo do texto, os autores do estudo apontam que outros setores da sociedade estão absorvendo doutores numa velocidade muito maior que a educação - uma clara indicação de que este tipo de profissional está sendo requisitado por outros setores que não são a academia.

Esta questão de outros setores estarem requisitando profissionais com títulos de mestre e doutor é algo que podemos ver nos anúncios de emprego (veja neste link como exemplo, e neste aqui também). No setor de educação, é algo que nos acostumamos a ver nos últimos 20, 30 anos: muitos concursos só podem ser feitos por candidatos com, no mínimo, título de doutor. Esse requisito da academia tem uma razão de ser: na academia, o profissional não é apenas um reprodutor do conhecimento, como uma gravação datada; ele é produtor de conhecimento, educador (e para ser educador, não basta apenas parar no tempo no conhecimento, é necessário se atualizar), formador de recursos humanos e outros acadêmicos. Sem o professor, nenhuma carreira existiria. E quanto menor a faixa etária do público-alvo, mais importante é o trabalho deste profissional, como bem sabem os finlandeses e outros países ditos de primeiro mundo.

Bom, colocado meu ponto de vista - de que título não serve apenas para a academia, mas para outros setores econômicos - a pergunta que devemos fazer é: por que a "iniciativa privada" valoriza mais, em termos financeiros, estes profissionais titulados em comparação com o governo federal? Para entender o que quero dizer, vamos olhar a tabela abaixo:
Esta tabela coloca em evidência como o governo valoriza o investimento que ele próprio faz em pós-graduação neste país: os cargos que melhor pagam não precisam mais do que graduação. E mais: os cargos que, a princípio, são os responsáveis pela formação de todos os outros (professores), estão na rabeira da tabela. Enquanto países como Finlândia, com os melhores índices educacionais do mundo, investem e, mais importante, valorizam a formação continuada dos seus professores, o Brasil prefere investir na formação destes profissionais e depois deixá-los com o dilema "ganhar mais e jogar no lixo a formação ou ganhar menos para não desperdiçá-la?".

Há, ainda, a opção que alguns dos nossos cientistas fizeram, duramente criticada pelos órgãos de fomento do governo: ir fazer doutorado no exterior e, diante de uma proposta de trabalho que esses profissionais NUNCA TERIAM no Brasil, estabelecer-se por lá, o que significa que o Brasil investiu na formação de um profissional que atuará para o crescimento de outro país. Reprovável esta atitude? Não sei, visto que o nosso governo parece não oferecer condições para que o cientista recuse uma oferta de emprego que paga bem, numa universidade com estrutura de pesquisa de primeiro mundo, com acesso a equipamento, material de consumo e financiamento de forma descomplicada, tendo status reconhecido pela sociedade. É como se, ao optar pelo Brasil, este cidadão estivesse naquela brincadeira do programa do SBT da década de 1980, "Domingo no Parque":

- Você quer trocar sua bicicleta por uma caixa de fósforos?

- Sim!

Ou seja, surdo e cego.

Para finalizar, a pergunta que não quer calar: todo mundo sabe que a moeda mais forte atualmente é o conhecimento. Acredito que seja por este motivo que o Brasil tem investido de forma crescente, desde a década de 1980, em formação em nível de pós-graduação e pesquisa. Mas por que então, após dar toda esta formação, o profissional não é valorizado pelo próprio governo? Ou melhor, para que gastar 10 anos de sua vida para ganhar BEM MENOS que alguém que investiu 4 anos? A questão não é, em absoluto, desvalorizar o profissional que ganha mais só com graduação; é valorizar aquele com formação maior, pagando um salário DECENTE E COMPATÍVEL.

Num país em que analfabetos funcionais fazem parte do Congresso Nacional, escândalos de corrupção não chocam mais e a sociedade acha que seus professores ganham é muito, difícil ver outro destino a não ser a eterna submissão ao primeiro mundo, sem nunca ter a oportunidade de SER o primeiro mundo. Que possamos explicar isso aos nossos filhos no futuro.

domingo, 20 de maio de 2012

Aposentadoria - uma preocupação presente

Texto originalmente publicado por mim em 14/04/2011 no Blog da SESUNIPAMPA, que aparentemente encontra-se desativado.

Caros colegas,

Este texto tem por objetivo alertar para as mudanças contínuas no sistema previdenciário e a perda de direitos gradativos da categoria com relação à aposentadoria, motivo de preocupação para todos, mesmo aqueles que ainda tem muito tempo pela frente para conseguir alcançar os requisitos mínimos para receber o valor máximo do provento. A ideia de fazer o texto surgiu na Assembléia da Sesunipampa que ocorreu no dia 23/02/2011, em Santana do Livramento, em que foi proposto à direção a elaboração de textos mais acessíveis relacionados a assuntos de interesse dos docentes.

O ANDES-SN publicou uma Cartilha sobre a Previdência e os Docentes das Instituições Públicas de Ensino, resultado de discussões do Grupo de Trabalho Seguridade Social / Assuntos de Aposentadoria (GT SSAA). Esta cartilha tem versão em PDF que pode ser baixada no site do ANDES-SN -http://portal.andes.org.br:8080/andes/portal.andes - a partir da página principal. Baseada nela e em contribuição de um dos membros do GT SSAA, Prof. João Wanderley Rodrigues Pereira da UFRN, abordarei aqui pontos centrais sobre o assunto de forma geral. Detalhes e dúvidas podem ser tirados na Cartilha do ANDES ou pelos comentários aqui do Blog.

Desde 1998, com a reforma da previdência dos governos Fernando Henrique Cardoso e Luis Inacio Lula da Silva, os servidores públicos vêm perdendo direitos conquistados historicamente pela categoria, como aposentadoria integral, paridade entre ativos e aposentados, aposentadoria por tempo de serviço, entre outros. Para entender melhor quais eram os critérios e direitos dos servidores públicos relacionados à aposentadoria, precisamos antes explicar alguns dos conceitos mencionados aqui.

Paridade: relaciona-se à igualdade do salário do aposentado com o salário do docente na ativa que esteja no mesmo nível em que o primeiro se aposentou.

Integralidade: relaciona-se ao conceito de se aposentar percebendo o valor correspondente ao seu último salário quando estava ativo.

Regime Próprio de Previdência Social (RPPS): regime operado pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, e aplicado aos servidores públicos. Critérios de acesso à aposentadoria, forma de cálculo, garantia de integralidade e paridade dependem da data em que foi adquirido o direito ao benefício. Este sistema cobra contribuição dos aposentados e pensionistas, diferente do Regime Geral de Previdência Social (operado pelo INSS), que não cobra.

Regime de Previdência Complementar (RPC): operado por entidades abertas ou fechadas de previdência complementar, não tem regulamentação ainda para o caso dos servidores públicos. Objeto de regulamentação tramita no Congresso Nacional.

Pois bem, agora vamos conhecer quais são os direitos que perdemos desde 1998, passando pela Reforma da Previdência do Governo Lula em 2003, e que ainda pode trazer mais mudanças com a implantação do RPC para os servidores públicos. Como a maioria dos docentes da Unipampa ingressaram após 2003 no serviço público, vou me concentrar neste caso específico. Para isto, fiz uma tabela comparativa para quem se aposentou antes de 1998 e para quem ingressou após 2003 no serviço público e vai se aposentar segundo as regras vigentes:


Percebemos pela tabela que perdemos uma série de direitos, e que até nos aposentarmos, podemos estar sujeitos a mais algumas reformas previdenciárias e consequente perdas de direitos. Esta tendência se evidencia pelas reformas previdenciárias que estão ocorrendo em outros países, como Inglaterra e França. Por este motivo, a preocupação com relação à aposentadoria é uma luta não somente dos aposentados, mas dos ativos sobretudo.


A perda da integralidade, ou seja, não nos aposentaremos recebendo provento correspondente ao último salário da ativa, se deve ao fato que o cálculo da aposentadoria é feita sobre uma média das maiores contribuições atualizadas sobre 80% do tempo contributivo. Para entender melhor isso, vamos pegar um exemplo simplificado para calcular de quanto seria um provento de um professor da Unipampa, no caso eu mesma. Entrei na Unipampa em 08/2006, aos 30 anos, sem ter contribuído antes para o INSS. Portanto me encaixo na situação de ter entrado após 2003 e de que a aposentadoria viria apenas do meu cargo como servidor público. Para que eu consiga o maior valor possível do provento (provento integral), preciso completar 30 anos de serviço público e alcançar 55 anos. Como entrei com 30 anos, só completarei o tempo de serviço aos 60 anos, já tendo alcançado a idade mínima. Nesses 30 anos de serviço público (ou 360 meses), passarei pelas carreiras de adjunto e associado, e por todos os níveis delas, pois entrei como Adjunto 1. Aqui vou fazer uma aproximação, que é dizer que as parcelas atualizadas correspondem aos valores da tabela de hoje para os níveis e carreiras. Portanto, em número de meses, receberei os seguintes salários (o salário abaixo é o vencimento básico + RT + Gemas, que é onde incide os 11% de recolhimento para a previdência):

Portanto, 80% de 360 meses, são 288 meses, e eu devo olhar para a tabela acima e pegar as 288 maiores contribuições, que correspondem ao que marquei em verde. Somo então estes valores e divido por 288. O resultado é que o provento da aposentadoria seria de R$10.998,34. Mas eu me aposentei ganhando R$11.424,45! Sim, aí está a questão da integralidade: você não vai se aposentar recebendo o que ganhava quando se aposentou. Esse valor que calculei está próximo do valor do último salário, mas lembre-se que "corrigi" as parcelas contributivas como se elas tivessem o mesmo valor de hoje para cada nível. Na realidade, a atualização das parcelas é feita por um índice divulgado pelo Ministério da Previdência Social. Ou seja, o valor pode ser menor ainda.


Quanto à paridade, se os docentes da ativa receberem aumento em seus salários, não está garantido aos aposentados este aumento. Portanto, um professor que se aposentou no nível de Adjunto 3 não ganha e nem recebe aumento que um professor no mesmo nível que está na ativa. Lembrem-se que antes de 1998 isto era garantido.


Hoje só podemos nos aposentar com proventos integrais (ou seja, fazendo o cálculo que fiz acima) se atingirmos tempo de serviço E idade mínima. Antes de 1998 podíamos nos aposentar com proventos integrais atingindo apenas o tempo de serviço.


Com este exemplo, espero ter contribuído para o entendimento da Cartilha do ANDES e da luta do sindicato pela recuperação de direitos e pela garantia de uma aposentadoria justa e tranquila. Espero também que textos como este possam sensibilizar os docentes da Unipampa para a importância de se ter uma representação sindical forte e atuante, pois a luta pela manutenção de direitos trabalhistas é constante, assim como são constantes os ataques do governo a eles.


Saudações, Dáfni Marchioro


Fontes: ANDES-SN, comunicação particular com Prof. João Wanderley, tabela de remuneração do servidores públicos do Ministério do Planejamento.