quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Saúde mental

2020 não foi um soco no estômago, foi uma ruptura de baço. Não bastava a pandemia e todas as consequências catastróficas vindas com ela, estamos na incerteza de termos vacina para o ano que vem, a Amazônia vem sendo destruída a galope e o governo não nos dá a mínima segurança em qualquer sentido. De tudo de muito ruim que está acontecendo, eu quero pegar um assunto em particular: saúde mental.

A pandemia nos isolou, nos tirou a vida normal ao qual estávamos acostumados e nos impôs uma nova “normalidade” que nos desconcerta. Não raro escuto diversos relatos de depressão, ansiedade, pânico. Eu mesma reparei a minha ansiedade em falar com as pessoas no mundo real, sobre qualquer assunto, e como me fazia bem quando isso acontecia (podia ser só uma conversa sobre o tempo, por exemplo). Ainda que eu seja meio bicho do mato, reservada, percebi essa ânsia pelo contato humano ao vivo, e imagino que as pessoas mais extrovertidas tenham sentido muito mais que eu. Não bastava chamada em vídeo, era necessário saber que não estamos sozinhos, que há outros seres humanos de carne e osso por aí, e que todos estamos sofrendo.

Outro dia assisti uma live da FTD Editora em que se debatia “a transformação da comunidade escolar”. Dentre os participantes, dois psiquiatras, um psicopedagogo, um casal de empresários do setor de educação e um consultor para digitalização no ambiente escolar. As falas dos psiquiatras e do psicopedagogo iam no sentido das angústias e mazelas de pais, professores e alunos em relação ao ensino remoto e a falta de contato humano. Devo dizer que escutei muitos relatos preocupantes durante a pandemia, desde crianças em depressão e com ideações suicidas, até professores exaustos, insatisfeitos e angustiados com a preparação e realização das aulas remotas (câmeras desligadas, falta de feedback, dificuldade na elaboração das aulas, etc.). E claro, relatos de mães, na sua maioria, que, em conflito para acomodar as atividades de casa, de emprego e dos filhos em aula, se sentiam falhas e deprimidas. Ou seja, aquelas falas contemplavam exatamente a realidade que presenciei.

Mas então vieram as falas dos empresários e do consultor, com alto teor mercadológico, pintando um mundo maravilhoso e colorido do ensino remoto. Ouvi com exasperação e profunda angústia relatos deste mundo que desconheço – talvez fosse em Marte, ou em Plutão, vai saber. Segundo os interlocutores, os alunos estão ávidos a digitalizar a escola analógica, pois o mundo já é assim e só a escola é que ficou pra trás na mudança. Que era possível usar a criatividade pra fazer uma aula muito mais interessante e completa, em que o professor não era o detentor do conhecimento, mas um gerente e coordenador num sistema “self-service” de conhecimento. Tudo para eles tinha um lado extremamente positivo e apontava a necessidade urgente de virarmos digitais. “E os contras deste tipo de ensino?” Pergunta que não foi sequer levada em conta no mundo maravilhoso do ensino remoto.

Assisti aquilo com muita, mas muita ansiedade e angústia. Fiquei chocada com a falta de noção e consideração com professores e alunos, especialmente aqueles que não tem acesso à tecnologia, internet rápida e ambiente de trabalho salutar. Na Unila tivemos a opção de oferecer ou não disciplinas nesta modalidade remota, mas sei que não foi o que aconteceu com os professores de instituições privadas, como é o caso dos professores da minha filha. Na obrigação de ter o que comer e sustentar minimamente a família, não tiveram e não terão escolha, mesmo que não saibam como dar uma aula neste ambiente, ou não acreditem neste tipo de ensino. Me dói pensar nesses professores, verdadeiros heróis que, junto com os profissionais da saúde, vivenciaram situações para as quais tiveram que abrir mão do seu bem estar para ajudar os alunos.

Aquelas falas causaram uma revolta no psicopedagogo, pelo que pude sentir em suas considerações finais. Ele apontou a idolatria da tecnologia, a necessidade humana do contato “olho-no-olho” e estudos que indicam que o processo de ensino-aprendizagem através de livros físicos ainda é o mais eficiente. E, o que deveria ser mais que óbvio para qualquer educador: crianças e adolescentes não sabem o que é melhor para eles em termos de educação, e não cabe a eles decidir. Esta fala me contemplou, mas ainda assim terminei a live com um incômodo enorme causado pela atitude mercadológica de vender um produto que, não, não substitui o ensino presencial, os professores e os alunos. Não somos números e nem gestores; somos seres humanos gregários que aprendemos e trocamos experiência com outro ser humano, e que o contato via computador não satisfaz essa necessidade.

Os psiquiatras da live também comentaram que os efeitos que tudo isso pode causar nas crianças já se mostram perturbadores, como o aparecimento de ansiedade e depressão em crianças tão novas. Já ouvi mães preocupadas com a incapacidade das crianças de socializar; eu mesma estava muito preocupada com a Yasmim, e nos esforçamos (eu e Dani) para proporcionar encontros seguros e chamadas pelo celular com outras crianças. No final de novembro a escola dela abriu para aulas presenciais, com todo o cuidado possível. Nós, temerosos com a pandemia, não mandaríamos, mas foi um pedido dela muito insistente que nos convenceu que seria importante ela ir, conviver com as professoras e os amiguinhos. E estávamos certos: colocados na balança o risco e a saúde mental dela, optamos pela segunda, após muita reflexão. Reflexões como essa nós fizemos para o final do ano, por exemplo, e acabamos decidindo que não vamos viajar e ver os parentes, pois nesse caso o risco parecia mais importante.

Com isso quero dizer que, se há algo que precisamos nos atentar, é com a saúde mental de nossas crianças e com a nossa, claro. Há que se pesar riscos e benefícios, e optando por riscos, fazer com responsabilidade, estudar o problema e conhecer suas limitações psicológicas. É triste ver o desmonte do sistema de saúde mental do SUS neste momento porque acredito que todos sairemos com sequelas psicológicas (alguns mais, outros menos) e muitos precisarão de ajuda profissional. Mas quem terá a ajuda é quem pode pagar, e mais uma vez, a desigualdade social se aprofunda. Mais uma vez esse governo, que claramente é fixado na morte e na destruição, age de forma criminosa, leviana e irresponsável, dilapidando um trabalho de anos dos servidores do SUS. Talvez muitos não julguem importante ter sistema de saúde mental no SUS, mas para quem precisa e faz uso é fundamental para se manter vivo e funcional, e acredito que todos nós sabemos, por conta da pandemia, o quanto estar bem psicologicamente é importante pra vida.

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Ser professor

 

Não me formei para ser professora, tanto que na época da graduação eu poderia fazer bacharelado e licenciatura juntos, e escolhi apenas bacharelado. No entanto, sabia que, para fazer aquilo que eu queria, que é pesquisa, precisava estar em uma universidade pública e, portanto, deveria ser professora também.


Foi em 2006, na Unipampa, que comecei a minha carreira docente. Na época, eu peguei uma disciplina de Cálculo 1 para o curso de Engenharia de Alimentos, pois meu concurso tinha sido na Matemática. Na primeira aula eu estava uma pilha de nervos, e deve ter sido a pior aula que já dei (rs). Mas quem me conhece sabe que não consigo fazer nada meia-boca (não estou me vangloriando, até porque o preço de ser assim é muito alto), e com o tempo fui aprimorando minha “didática” e gostando de ensinar. Li Paulo Freire e Rubem Alves, tentei abordagens diferentes; aprendi que ensinando eu me aprofundava cada vez mais nos temas das disciplinas, pois é quando a gente tem que explicar é que usamos tudo o que sabemos para se fazer entender. Também tive que me deparar com as minhas falhas e limitações pois, não importa o quão boa seja a nossa aula, a aprendizagem não depende apenas de nós.


Tive poucos feedbacks, mas os que recebi me emocionaram muito mais que qualquer artigo que eu tenha publicado. Teve um que lembro com muito, muito carinho: uma estudante jamaicana que me procurou para pedir ajuda extraclasse, pois ela tinha muita dificuldade. Combinamos vários horários de atendimento, e no fim ela passou sem exame. Dias depois do fim da disciplina, ela me manda um e-mail dizendo que tentou me encontrar pessoalmente, mas não conseguiu: ela queria me agradecer muito, porque sem mim ela não teria conseguido. Toda vez que penso nisso lágrimas aparecem nos meus olhos, porque a verdade é que eu não vou ser nenhuma Marie Curie ou Emily Noether na pesquisa, então o meu legado mais importante é ajudar os estudantes a entender física, e quem sabe eles e elas contribuirão mais do que eu para a ciência.


Hoje em dia é na sala de aula que me realizo, pois ensinar não é uma via de mão única: ao ensinar, eu aprendo, penso e crio. Uma aula, para mim, é quase como um ritual: me visto para me sentir bem, e me preparo para a melhor aula que eu possa dar. Às vezes dá certo, e às vezes não dá, afinal sou humana. E estou morrendo de saudades desse contato com os estudantes.


Na pandemia, tive a oportunidade de ver professores do ensino básico ensinar através do ensino remoto da Yasmim, e digo: é outro nível. Eu realmente acho que esses(as) professores(as) têm um dom fantástico, de fazer a criançada entender coisas e ao mesmo tempo manter a disciplina necessária para a aula. Eu os(as) admiro muito mais agora, e entendo completamente o lugar de destaque que possuem nos países nórdicos. São eles e elas que colocam os primeiros pilares de conhecimento na cabecinha dos futuros adultos. É um trabalho de muita importância para formar cidadãos e seres humanos éticos e responsáveis.


Um parabéns a todos os meus colegas, conhecidos e amigos professores. Que possamos manter a chama da empolgação e da dedicação no nosso fazer e ser.

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Dias de marmota

 Acordei de um sonho de vida normal. Como no filme Amnésia, olho ao redor e lembro: pandemia, quarentena, aff... Levanto, faço meu café, como alguma coisa. Vou ao banheiro, coloco a lente, passo filtro solar. Dou uma geral na cozinha. Yasmim acorda, tem aula de xadrez logo. Coloco roupa para lavar. Coloco o Skype para Yas ter sua aula. Jogo um pouco no celular; logo o almoço estará pronto. Almoço pronto, sentamos à mesa. Terminamos, começo o processo de recolher tudo, colocar em potinhos, colocar louça na máquina, fazer café e esperar o link da aula online da Yas. Preparo o uniforme, a escova de dentes dela, o aparelho, arrumo a mesa pra aula. Sento um pouco, aguardando o link, e jogo no celular. Chamo Yasmim pra escovar os dentes e ficar pronta pra aula. O link chega. Vamos à sala, ligo o computador, digito o código do Google Meet; ela senta pra aula. Vou pro meu outro computador, começo a fazer pesquisa ("pra quê????"). "Malditas funções de Bessel..." Chega a hora do lanche da Yasmim: pão na chapa com Nutella. Volto pra pesquisa. "Qual relação de correlação eu tenho que usar Dani?" "Vê lá no site que te passei." "OK". Acaba a aula da Yasmim. "Posso jogar no celular?" "Pode." Encerro as contas, vou assistir um dos meus programas favoritos: "Vivendo com o Inimigo". "Como as pessoas podem se tornar tão más? Ah, sei, culpa dos pais... (rs)" Hora do jantar da Yasmim: esquentar o que sobrou do almoço. Mais um pouco de TV e crochê. "Queria fazer tudo... como se tenho duas mãos?" "Mãe, comi tudo... posso comer açaí?" "Pode." Açaí pra Yasmim. Conversamos, Dani e eu, brevemente, em como o Brasil está uma m*rda. Mais TV, agora "Law and Order: SVU". Hora de colocar Yasmim na cama. Banho, trazer o pijama, arrumar escova e aparelho... "Mãe, lanchinho da noite!" "Pede pro seu pai". Dani dá o lanchinho da noite: frutas. "Yasmim, já acabou?" "Não ainda..." "Pára de enrolar, vem escovar os dentes pra dormir!" "Mãe, tô com dor de barriga..." "Já passa... são gases..." "Mãe, e se tiver uma aranha no meu quarto?" "Não vai ter, vai dormir no seu quarto! Boa noite Yas!" "Boa noite mãe!" Vou pro quarto, continuo um dos trocentos projetos de crochê. "Posso ver Fringe aqui Daf?" "Sim..." Yasmim volta: "mãe, não consigo dormir..." "Vai lá pra sua cama, fica pensando em coisas boas e logo vc dorme..." "Não consigo mãe..." "Vai dormir Yas!" Passa um tempo. "Não consigo dormir..." "Então começa dormindo aqui e depois papai te leva pra sua cama..." Escovo os dentes. Tiro a lente de contato. Pego meu livro atual: BTK. Tô espremida no canto da cama. Leio um pouco, fico com sono... Dani leva Yas pra cama. Bate a fome, como mais do que deveria, sinto sono e vou escovar os dentes (de novo). Durmo quase que imediatamente. De madrugada, Ronro pede comida. Acordo sonâmbula, coloco comida pra ela. Durmo de novo. Ela resolve ficar em cima de mim. "Preciso me mexer..." Me mexo, Ronro sai. Volta de novo. Sonho com um mundo normal, onde temos contato afetivo com as pessoas, abraçamos, beijamos, discutimos, conversamos, saímos... Acordo. "Mais um dia da marmota... até quando?"

sábado, 8 de agosto de 2020

A mercantilização dos afetos

Eu consumo porcaria televisiva constantemente porque me faz esquecer um pouco a dura realidade. Em especial reality shows, apesar de que Big Brother Brasil já seja demais pra mim (tenho meus limites – rs). Dois dos reality shows que tenho visto atualmente são 90 dias para casar (o normal e o felizes para sempre?) e Amor fora das grades. Não vou dizer se são bons ou não (é entretenimento de gosto duvidoso com certeza (rs)), mas vou aqui deixar minhas reflexões sobre os programas no que concerne ao tipo de relacionamento que se estabelece entre a maioria dos casais.

No 90 dias para casar duplas formadas por um americano(a) + um estrangeiro(a) decidem se casar após um relacionamento virtual de algum tempo, e então eles solicitam um visto K1 americano para que o estrangeiro(a) vá para os EUA; eles então têm 90 dias para oficializar a união. Já o subproduto 90 dias para casar: felizes para sempre? é o acompanhamento das vidas de alguns dos casais após o casamento, e a adaptação a famílias, convívio, empregos, etc. Depois de assistir várias vezes alguns episódios (porque o TLC repete demais... ), eu fiquei impressionada como a relação dos casais se estabelece através de uma cobrança por parte dos americanos(as) dos benefícios que, a princípio, eles(as) proporcionaram a seu parceiro(a) estrangeiro(a) por trazerem os(as) mesmos(as) para os EUA: green card e o sonho americano. Fiquei chocada como os(as) estrangeiros(as) são tratados como posse do(a) americano(a), mesmo que haja de fato uma suspeita de que o(a) estrangeiro(a) tenha casado só pelo green card. O(a) estrangeiro(a) é propriedade e deve se comportar como tal até que consiga sua “liberdade” ao conseguir o famigerado green card. Mesmo nos casos em que eles(as) consigam, ainda assim, paira a ameaça de que o(a) americano(a) possa denuncia-lo(a) à imigração por fraude no casamento.

Uma das histórias que fiquei muito chateada é a de Pedro e Chantel. Pedro é da República Dominicana, e Chantel americana de classe média. Conheceram-se na República Dominicana, apaixonaram-se e resolveram se casar, com Pedro pedindo o visto K1 e indo para os EUA. Mas Chantel não contou aos pais classe média que Pedro estava nos EUA para casar com ela, e os pais começaram a achar que a filha estava caindo num golpe, e desde então qualquer atitude de Pedro e da família dele eram provas para eles desse fato. Eles se casaram mediante um acordo pré-nupcial que Pedro foi obrigado a assinar, e que causou chateação ao Pedro e à família dele (composta pela mãe e sua irmã). Após o casamento nos EUA e do green card, Pedro mandava quantias de dinheiro e presentes para a família dele, o que deixava Chantel incomodada. Mandar dinheiro para a família é algo muito comum para estrangeiros que moram nos EUA e sejam de países pobres – inclusive brasileiros – além do fato de que, nas sociedades latinas, o homem continua a ter a responsabilidade por sua família. Mas Chantel nunca entendeu isso e nem sua família, porque ela tinha que ter um padrão de vida melhor - afinal de contas, ela era a esposa. Quando decidiram fazer um segundo casamento na República Dominicana para que as famílias se conhecessem, Chantel e a família ficaram chocados com duas coisas: o apartamento que a mãe e irmã de Pedro moravam, e a quantidade de presentes que ele levou pra elas. O apartamento delas é um apartamento de três quartos mas que, pelas imagens, dava para ver ser bastante humilde. No entanto, para os americanos, o fato de ter 3 quartos era um luxo, principalmente porque Pedro e Chantel viviam num apartamento bem menor. Num outro momento, a família de Chantel foi conhecer a avó do Pedro, que morava longe e numa região bem empobrecida. Ao chegar ao lugar, os americanos se recusaram a sair do carro, com medo por suas vidas (“a milícia deve viver aqui”) e “revolta” por achar que a mãe e irmã do Pedro estavam muito melhores que o resto da família e isso era prova do plano malévolo de enriquecer às custas do casamento de Pedro. Além de irem embora sem conhecer a avó de Pedro (que havia preparado um jantar para eles), a família falou a Chantel que era óbvio como Pedro estava sendo manipulado pela mãe e irmã para se darem bem. É repugnante a ideia que os americanos têm dos estrangeiros, e a forma de impor sua vontade e suas opiniões pela fragilidade deles.

O segundo programa – Amor fora das grades – mostra algo parecido. É a história de relacionamentos que se formaram entre um presidiário(a) e alguém que está fora da cadeia. No caso, o presidiário(a) está prestes a sair em liberdade e a iniciar a convivência com seu parceiro(a). Mas quando o presidiário(a) sai, vem a cobrança para se comportar como exclusivo de seu parceiro(a), sem poder “curtir a vida” ou agir como alguém “normal”, com vontades e desejos. Ali a moeda de troca é o amor incondicional do parceiro(a) durante o tempo de reclusão. Então, por esse motivo, acham que têm o direito de cobrar esse amor e a sua submissão como “pagamento”.

Não vejo empatia, amor, vontade de construir uma vida com respeito – só vejo posse e dominação. E isso tem a ver com estabelecer uma relação de mercantilização com o(a) parceiro(a) mais fragilizado(a), algo como patrão-empregado. É quase um contrato de escravidão, em que o estrangeiro ou o presidiário tem que “andar na linha” para não perder as oportunidades que lhe foram dadas. Na maior parte das relações, o(a) parceiro(a) dominante escolheu procurar alguém nessa situação justamente por não conseguir estabelecer um relacionamento fora desses moldes – como se eles fossem pessoas rejeitadas pela sociedade, “losers”, e sua oportunidade de ter alguém para construir a vida seja apenas através do aprisionamento e posse.

Não é de agora que isso acontece, e por muito tempo mulheres estão à mercê deste tipo de relacionamento. Mas agora temos também as mulheres na posição de poder e, infelizmente, não se comportam de forma diferente dos homens. Enfim, me causa estranheza que relações amorosas se configurem através dessa mercantilização do afeto - um sinal de que o capitalismo está cada vez mais entranhado na nossa vida, permeando inclusive situações onde não se encaixaria. Triste conclusão.

terça-feira, 2 de junho de 2020

Nazi-fascismo e o governo Bolsonaro

O nazi-fascismo está mais presente do que nunca. Não foi suficiente apresentar ao mundo os campos de concentração e um mundo dizimado pela Segunda Guerra: suas sementes teimam em brotar mesmo um século depois. É preciso entender que o nazi-fascismo tem uma receita, uma estética e uma organização muito bem definidas, estas seguidas a risca pelos movimentos de ultra direita. Vou falar aqui um pouco desta receita e de como o governo Bolsonaro e seu séquito de fanáticos se apropriam e reproduzem este movimento.

Após sua prisão em 1924, Hitler escreve Mein Kampf, o livro que expõe sua visão de mundo. Esta visão de mundo engloba poucos conceitos e de forma vaga. Para Hitler, a Alemanha foi destruída pelos "traidores de Novembro", que aceitaram a derrota da Alemanha na Primeira Guerra e era representada pela República de Weimar, de orientação política social democrata. No entanto, Hitler culpa os comunistas, dizendo que o marxismo era uma invenção dos judeus, a grande escória que subjugava o povo alemão. Era necessário resgatar os valores alemães: a sua cultura e tradição (folk), a família e a pureza da raça ariana. Os degenerados e fracos (judeus, ciganos, comunistas, pessoas que necessitam de cuidados especiais) deviam ser banidos e destruídos, e os verdadeiros alemães (raça ariana) deviam reconstruir a Alemanha através do Terceiro Reich. Os territórios perdidos na Primeira Guerra deviam ser recuperados, e outros deviam ser conquistados para o que ele chamava de "espaço vital", necessário para reconstruir a Alemanha e elevá-la acima dos outros povos como grande potência militar.

Para isso, Hitler sabia que era necessário ter um exército próprio de milicianos (as SA e as SS), o qual ele teria total controle e que estariam a postos para o que fosse necessário fazer. Após o golpe frustrado no começo da década de 1920, ele entendeu que esta não era uma via possível para a chegada ao poder, e por isso concentrou esforços em chegar ao posto mais alto de comando da Alemanha pela via democrática. As tropas de assalto (SA) intimidavam os oponentes, em especial os comunistas, mas não seriam usadas para a chegada ao poder: elas simplesmente simbolizavam o poder militar que Hitler poderia reunir, como uma ameaça velada.

Hitler construi uma estética para o Terceiro Reich. Sua visão arquitetônica era calcada na era clássica, fazendo um apelo claro para o retorno aos valores tradicionais. A arte moderna, em especial a produzida por judeus, foi execrada: algumas destruídas quando ele chegou ao poder, outras expostas num museu para exemplificar "a arte degenerada que deveria ser banida". As fotos dos grandes comícios nazistas (que ocorriam em Nuremberg) mostram uma ordenação que lembra a Roma antiga, com suas tropas perfiladas de forma milimétrica, as bandeiras nazistas e os uniformes militares. E claro, não podia faltar a saudação "Heil Hitler" com o braço estendido, gesto de profunda submissão de seu séquito ao grande Fuhrer.

Goebbels, por sua vez, foi o grande idealizador da propaganda nazista. A propaganda nazista era necessária para manter o controle das massas, para a grande lavagem cerebral que martelava que era necessário se proteger do avanço comunista e reconstruir a Alemanha para os verdadeiros alemães. A visão do Fuhrer era repetidamente propagada, com discursos eloquentes e de slogans simples, que iam de encontro aos corações e estômagos alemães.

Com esses três grandes pilares (milícia organizada, estética e propaganda), o partido nazista cresceu muito no final da década de 1920 e começo de 1930, levando Hitler a ser convidado pelo presidente Hindenburg para ser chanceler da Alemanha em 1933. Com a morte de Hindenburg e a dissolução do Reichstag, ele virou o ditador da Alemanha e conduziu o mundo para a Segunda Guerra Mundial e o holocausto.

A receita do nazi-fascismo é seguida com exatidão por Bolsonaro e a ultra direita. Não são à toa as milícias armadas e a campanha para que todo cidadão tenha uma arma para poder se defender, as camisas verde-amarelas, os slogans como "Brasil acima de tudo, Deus acima de todos", o temor do avanço comunista ("Brasil não vai virar uma Venezuela"), e a retomada dos valores tradicionais de tradição, família e propriedade. Bolsonaro prega um nacionalismo para poucos - apenas para os cidadãos de bem, os não degenerados. Assim como Hitler, chega ao poder com o apoio da burguesia, que vê a possibilidade de retomar seus lucros exorbitantes via exploração da força de trabalho e retirada de direitos trabalhistas. Mas, para nossa sorte, Bolsonaro não conseguiu retomar a economia e a reconstrução do país, algo que Hitler teve grande êxito.

No entanto, não nos deixemos enganar com suas dificuldades técnicas em recuperar o país e conter a pandemia da COVID-19. As manifestações em frente ao Palácio do Planalto todos os domingos pedindo o fechamento do congresso e do STF, as ameaças de seus filhos e ministros à democracia e as manifestações que usam a estética da supremacia branca devem nos arrepiar e nos colocar em sinal de alerta máximo. Não são demonstrações de loucos que não sabem o que fazem, ao contrário: elas explicitam ainda mais a visão de mundo de Bolsonaro e de seus seguidores. Uma visão de mundo que combina nacionalismo, fascismo, ditadura e extermínio/subjugação de quem se coloca em oposição ao seu projeto de poder, apoiada por milícias armadas prontas a agirem. Nestes 30 anos desde a derrubada da ditadura militar, nunca estivemos tão próximos de retornar a 1964. E assim como em 1964, estamos perplexos e paralisados.

É hora de acordarmos, de nos posicionarmos. A história da Alemanha nazista precisa ser o alerta para o que estamos vivenciando. Não adianta somente gritarmos nas redes sociais que somos antifascistas; é preciso sermos de fato.