quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Saúde mental

2020 não foi um soco no estômago, foi uma ruptura de baço. Não bastava a pandemia e todas as consequências catastróficas vindas com ela, estamos na incerteza de termos vacina para o ano que vem, a Amazônia vem sendo destruída a galope e o governo não nos dá a mínima segurança em qualquer sentido. De tudo de muito ruim que está acontecendo, eu quero pegar um assunto em particular: saúde mental.

A pandemia nos isolou, nos tirou a vida normal ao qual estávamos acostumados e nos impôs uma nova “normalidade” que nos desconcerta. Não raro escuto diversos relatos de depressão, ansiedade, pânico. Eu mesma reparei a minha ansiedade em falar com as pessoas no mundo real, sobre qualquer assunto, e como me fazia bem quando isso acontecia (podia ser só uma conversa sobre o tempo, por exemplo). Ainda que eu seja meio bicho do mato, reservada, percebi essa ânsia pelo contato humano ao vivo, e imagino que as pessoas mais extrovertidas tenham sentido muito mais que eu. Não bastava chamada em vídeo, era necessário saber que não estamos sozinhos, que há outros seres humanos de carne e osso por aí, e que todos estamos sofrendo.

Outro dia assisti uma live da FTD Editora em que se debatia “a transformação da comunidade escolar”. Dentre os participantes, dois psiquiatras, um psicopedagogo, um casal de empresários do setor de educação e um consultor para digitalização no ambiente escolar. As falas dos psiquiatras e do psicopedagogo iam no sentido das angústias e mazelas de pais, professores e alunos em relação ao ensino remoto e a falta de contato humano. Devo dizer que escutei muitos relatos preocupantes durante a pandemia, desde crianças em depressão e com ideações suicidas, até professores exaustos, insatisfeitos e angustiados com a preparação e realização das aulas remotas (câmeras desligadas, falta de feedback, dificuldade na elaboração das aulas, etc.). E claro, relatos de mães, na sua maioria, que, em conflito para acomodar as atividades de casa, de emprego e dos filhos em aula, se sentiam falhas e deprimidas. Ou seja, aquelas falas contemplavam exatamente a realidade que presenciei.

Mas então vieram as falas dos empresários e do consultor, com alto teor mercadológico, pintando um mundo maravilhoso e colorido do ensino remoto. Ouvi com exasperação e profunda angústia relatos deste mundo que desconheço – talvez fosse em Marte, ou em Plutão, vai saber. Segundo os interlocutores, os alunos estão ávidos a digitalizar a escola analógica, pois o mundo já é assim e só a escola é que ficou pra trás na mudança. Que era possível usar a criatividade pra fazer uma aula muito mais interessante e completa, em que o professor não era o detentor do conhecimento, mas um gerente e coordenador num sistema “self-service” de conhecimento. Tudo para eles tinha um lado extremamente positivo e apontava a necessidade urgente de virarmos digitais. “E os contras deste tipo de ensino?” Pergunta que não foi sequer levada em conta no mundo maravilhoso do ensino remoto.

Assisti aquilo com muita, mas muita ansiedade e angústia. Fiquei chocada com a falta de noção e consideração com professores e alunos, especialmente aqueles que não tem acesso à tecnologia, internet rápida e ambiente de trabalho salutar. Na Unila tivemos a opção de oferecer ou não disciplinas nesta modalidade remota, mas sei que não foi o que aconteceu com os professores de instituições privadas, como é o caso dos professores da minha filha. Na obrigação de ter o que comer e sustentar minimamente a família, não tiveram e não terão escolha, mesmo que não saibam como dar uma aula neste ambiente, ou não acreditem neste tipo de ensino. Me dói pensar nesses professores, verdadeiros heróis que, junto com os profissionais da saúde, vivenciaram situações para as quais tiveram que abrir mão do seu bem estar para ajudar os alunos.

Aquelas falas causaram uma revolta no psicopedagogo, pelo que pude sentir em suas considerações finais. Ele apontou a idolatria da tecnologia, a necessidade humana do contato “olho-no-olho” e estudos que indicam que o processo de ensino-aprendizagem através de livros físicos ainda é o mais eficiente. E, o que deveria ser mais que óbvio para qualquer educador: crianças e adolescentes não sabem o que é melhor para eles em termos de educação, e não cabe a eles decidir. Esta fala me contemplou, mas ainda assim terminei a live com um incômodo enorme causado pela atitude mercadológica de vender um produto que, não, não substitui o ensino presencial, os professores e os alunos. Não somos números e nem gestores; somos seres humanos gregários que aprendemos e trocamos experiência com outro ser humano, e que o contato via computador não satisfaz essa necessidade.

Os psiquiatras da live também comentaram que os efeitos que tudo isso pode causar nas crianças já se mostram perturbadores, como o aparecimento de ansiedade e depressão em crianças tão novas. Já ouvi mães preocupadas com a incapacidade das crianças de socializar; eu mesma estava muito preocupada com a Yasmim, e nos esforçamos (eu e Dani) para proporcionar encontros seguros e chamadas pelo celular com outras crianças. No final de novembro a escola dela abriu para aulas presenciais, com todo o cuidado possível. Nós, temerosos com a pandemia, não mandaríamos, mas foi um pedido dela muito insistente que nos convenceu que seria importante ela ir, conviver com as professoras e os amiguinhos. E estávamos certos: colocados na balança o risco e a saúde mental dela, optamos pela segunda, após muita reflexão. Reflexões como essa nós fizemos para o final do ano, por exemplo, e acabamos decidindo que não vamos viajar e ver os parentes, pois nesse caso o risco parecia mais importante.

Com isso quero dizer que, se há algo que precisamos nos atentar, é com a saúde mental de nossas crianças e com a nossa, claro. Há que se pesar riscos e benefícios, e optando por riscos, fazer com responsabilidade, estudar o problema e conhecer suas limitações psicológicas. É triste ver o desmonte do sistema de saúde mental do SUS neste momento porque acredito que todos sairemos com sequelas psicológicas (alguns mais, outros menos) e muitos precisarão de ajuda profissional. Mas quem terá a ajuda é quem pode pagar, e mais uma vez, a desigualdade social se aprofunda. Mais uma vez esse governo, que claramente é fixado na morte e na destruição, age de forma criminosa, leviana e irresponsável, dilapidando um trabalho de anos dos servidores do SUS. Talvez muitos não julguem importante ter sistema de saúde mental no SUS, mas para quem precisa e faz uso é fundamental para se manter vivo e funcional, e acredito que todos nós sabemos, por conta da pandemia, o quanto estar bem psicologicamente é importante pra vida.

Nenhum comentário:

Postar um comentário