sábado, 8 de agosto de 2020

A mercantilização dos afetos

Eu consumo porcaria televisiva constantemente porque me faz esquecer um pouco a dura realidade. Em especial reality shows, apesar de que Big Brother Brasil já seja demais pra mim (tenho meus limites – rs). Dois dos reality shows que tenho visto atualmente são 90 dias para casar (o normal e o felizes para sempre?) e Amor fora das grades. Não vou dizer se são bons ou não (é entretenimento de gosto duvidoso com certeza (rs)), mas vou aqui deixar minhas reflexões sobre os programas no que concerne ao tipo de relacionamento que se estabelece entre a maioria dos casais.

No 90 dias para casar duplas formadas por um americano(a) + um estrangeiro(a) decidem se casar após um relacionamento virtual de algum tempo, e então eles solicitam um visto K1 americano para que o estrangeiro(a) vá para os EUA; eles então têm 90 dias para oficializar a união. Já o subproduto 90 dias para casar: felizes para sempre? é o acompanhamento das vidas de alguns dos casais após o casamento, e a adaptação a famílias, convívio, empregos, etc. Depois de assistir várias vezes alguns episódios (porque o TLC repete demais... ), eu fiquei impressionada como a relação dos casais se estabelece através de uma cobrança por parte dos americanos(as) dos benefícios que, a princípio, eles(as) proporcionaram a seu parceiro(a) estrangeiro(a) por trazerem os(as) mesmos(as) para os EUA: green card e o sonho americano. Fiquei chocada como os(as) estrangeiros(as) são tratados como posse do(a) americano(a), mesmo que haja de fato uma suspeita de que o(a) estrangeiro(a) tenha casado só pelo green card. O(a) estrangeiro(a) é propriedade e deve se comportar como tal até que consiga sua “liberdade” ao conseguir o famigerado green card. Mesmo nos casos em que eles(as) consigam, ainda assim, paira a ameaça de que o(a) americano(a) possa denuncia-lo(a) à imigração por fraude no casamento.

Uma das histórias que fiquei muito chateada é a de Pedro e Chantel. Pedro é da República Dominicana, e Chantel americana de classe média. Conheceram-se na República Dominicana, apaixonaram-se e resolveram se casar, com Pedro pedindo o visto K1 e indo para os EUA. Mas Chantel não contou aos pais classe média que Pedro estava nos EUA para casar com ela, e os pais começaram a achar que a filha estava caindo num golpe, e desde então qualquer atitude de Pedro e da família dele eram provas para eles desse fato. Eles se casaram mediante um acordo pré-nupcial que Pedro foi obrigado a assinar, e que causou chateação ao Pedro e à família dele (composta pela mãe e sua irmã). Após o casamento nos EUA e do green card, Pedro mandava quantias de dinheiro e presentes para a família dele, o que deixava Chantel incomodada. Mandar dinheiro para a família é algo muito comum para estrangeiros que moram nos EUA e sejam de países pobres – inclusive brasileiros – além do fato de que, nas sociedades latinas, o homem continua a ter a responsabilidade por sua família. Mas Chantel nunca entendeu isso e nem sua família, porque ela tinha que ter um padrão de vida melhor - afinal de contas, ela era a esposa. Quando decidiram fazer um segundo casamento na República Dominicana para que as famílias se conhecessem, Chantel e a família ficaram chocados com duas coisas: o apartamento que a mãe e irmã de Pedro moravam, e a quantidade de presentes que ele levou pra elas. O apartamento delas é um apartamento de três quartos mas que, pelas imagens, dava para ver ser bastante humilde. No entanto, para os americanos, o fato de ter 3 quartos era um luxo, principalmente porque Pedro e Chantel viviam num apartamento bem menor. Num outro momento, a família de Chantel foi conhecer a avó do Pedro, que morava longe e numa região bem empobrecida. Ao chegar ao lugar, os americanos se recusaram a sair do carro, com medo por suas vidas (“a milícia deve viver aqui”) e “revolta” por achar que a mãe e irmã do Pedro estavam muito melhores que o resto da família e isso era prova do plano malévolo de enriquecer às custas do casamento de Pedro. Além de irem embora sem conhecer a avó de Pedro (que havia preparado um jantar para eles), a família falou a Chantel que era óbvio como Pedro estava sendo manipulado pela mãe e irmã para se darem bem. É repugnante a ideia que os americanos têm dos estrangeiros, e a forma de impor sua vontade e suas opiniões pela fragilidade deles.

O segundo programa – Amor fora das grades – mostra algo parecido. É a história de relacionamentos que se formaram entre um presidiário(a) e alguém que está fora da cadeia. No caso, o presidiário(a) está prestes a sair em liberdade e a iniciar a convivência com seu parceiro(a). Mas quando o presidiário(a) sai, vem a cobrança para se comportar como exclusivo de seu parceiro(a), sem poder “curtir a vida” ou agir como alguém “normal”, com vontades e desejos. Ali a moeda de troca é o amor incondicional do parceiro(a) durante o tempo de reclusão. Então, por esse motivo, acham que têm o direito de cobrar esse amor e a sua submissão como “pagamento”.

Não vejo empatia, amor, vontade de construir uma vida com respeito – só vejo posse e dominação. E isso tem a ver com estabelecer uma relação de mercantilização com o(a) parceiro(a) mais fragilizado(a), algo como patrão-empregado. É quase um contrato de escravidão, em que o estrangeiro ou o presidiário tem que “andar na linha” para não perder as oportunidades que lhe foram dadas. Na maior parte das relações, o(a) parceiro(a) dominante escolheu procurar alguém nessa situação justamente por não conseguir estabelecer um relacionamento fora desses moldes – como se eles fossem pessoas rejeitadas pela sociedade, “losers”, e sua oportunidade de ter alguém para construir a vida seja apenas através do aprisionamento e posse.

Não é de agora que isso acontece, e por muito tempo mulheres estão à mercê deste tipo de relacionamento. Mas agora temos também as mulheres na posição de poder e, infelizmente, não se comportam de forma diferente dos homens. Enfim, me causa estranheza que relações amorosas se configurem através dessa mercantilização do afeto - um sinal de que o capitalismo está cada vez mais entranhado na nossa vida, permeando inclusive situações onde não se encaixaria. Triste conclusão.

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